sábado, 31 de outubro de 2015

Castigo

Oi,

Desculpem não ter postado nada nos últimos dias, mas tenho estado com a cabeça a mil e não consegui simplesmente parar para escrever algo aqui. Em tese, este post deveria ser curto porque não estou sentindo muita vontade de ficar escrevendo hoje. Entretanto, a maior parte dos outros posts deveriam ser curtos mas quando eu vejo já escrevi um monte.

O título do post é referente ao que eu entendo como é minha situação no momento. Primeiro final de semana com a tornozeleira e ainda dou a sorte de pegar um feriado nacional na segunda feira. 3 dias de molho em casa sem poder colocar o pé para fora. Não é 100% verdade essa afirmação porque existe um raio de erro de 100 metros devido a classe de precisão (ou no caso, de imprecisão) do sensor de GPS da tornozeleira. Entretanto, não vou ficar brincando com essa "folga" que existe no GPS e me arriscar a voltar para a cadeia novamente. Outra coisa que eu descobri é que este sistema de tornozeleira é passivo e não ativo. Isso significa que, como ele fica a maior parte do tempo sem sinal de telefone para enviar os meus dados de localização para o sistema, a tornozeleira armazena onde estou até um certo ponto (o quanto eu não sei) e quando consegue sinal envia de uma vez só todos os dados.

O sistema do outro lado que analisa os dados recebidos que irá dizer se eu cometi alguma infração ou não. Isso significa que mesmo que eu saia de casa não seria imediatamente notificado e preso, mesmo assim isto aconteceria eventualmente. Esta divagação toda é só uma amostra de tudo que tem passado pela minha cabeça nestes últimos dias, e essa é a parte mais tranquila. Voltar a não ter liberdade, mesmo que somente em alguns dias, me trouxe uma série de lembranças da época em que eu estive preso.

Todo mundo me diz que eu devo ficar agradecido de não ter sido preso e que somente estou com uma tornozeleira eletrônica e limitado a ficar em casa (um lugar melhor que a prisão) por alguns dias. Eu entendo, pelo lado racional, completamente o que eles me dizem. Concordo 100% de que a tornozeleira é infinitamente melhor que a cadeia. Entretanto, nenhuma destas pessoas teve que passar um período preso. Realmente é verdade que ficar em casa é muito melhor que ficar na cadeia devido a uma série de coisas como comida, higiene, privacidade, entretenimento (uma das coisas mais difíceis de estar preso é ter todo o tempo do mundo e nada para fazer) e uma série de outras coisas. Ainda assim, a sensação de ter algo preso ao seu tornozelo que irá te rastrear a todas as horas do dia é algo muito opressivo para mim.

Me lembra a sensação que eu tinha toda vez que os agentes penitenciários fechavam a porta da cela (às vezes, sem razão nenhuma aparente e sem nenhuma explicação) e você não sabia quando a porta abriria de novo. Mesmo quando a porta da cela era aberta, o portão da galeria estava fechado. Um lembrete constante de que você não possui liberdade, mesmo quando está "livre" de ficar em sua cela. Mesmo que o portão da galeria estivesse aberto, o portão do corredor de acesso à galeria estaria fechado. Você pode até descer as rampas até o corredor de acesso mas não passaria do portão (fora que os agentes não se sentem a vontade com você perto deste portão e normalmente te mandam subir de volta para a galeria). Mesmo que o portão do corredor fosse aberto para você (para obter atendimento médico, parlatório com os advogados ou etc) o portão principal que dá acesso a área administrativa da prisão estaria fechado. Passando este portão você chegaria em um longo corredor até o portão principal para à área administrativa externa (recepção e etc...) e somente algemado e com um marco-passo você chega aqui. Além disto existe uma porta (dessa vez uma porta comum) e além disto os portões de entrada da cadeia. Um longo caminho de onde você está até a liberdade. Não mais, na maior parte das vezes, que 150 metros. Algo tão perto e ao mesmo tempo tão longe.

Isto é o que eu sinto com a tornozeleira, que estou sendo vigiado de uma certa maneira de tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Sinto a mesma agonia de estar privado de simplesmente fazer qualquer coisa que eu sinta vontade. De ir ao mercado ou ao shopping ou algo assim. Coisas tão banais que não damos a mínima atenção durante nossas vidas. Quando temos estas pequenas liberdades removidas sentimos como estas pequenas coisas se somam para significar algo muito maior.

Novamente digo que a minha parte racional entende perfeitamente a razão de estar com a tornozeleira, como isto tem alguns benefícios para mim e que, mais importante, ao realizar um crime eu serei punido e terei direitos limitados ou removidos. Tal qual uma criança tem ao ser colocada de castigo por seus pais. Emocionalmente falando me sinto oprimido, como se uma sombra pairasse sobre mim e que caso eu faça alguma besteira serei punido em dobro pelo o que eu fiz. Eu sinto medo do estado me vigiando da maneira como ele está me vigiando e fico com receio de cometer algum erro ou deslize bobo que agrave minha situação.

Tenho que tomar cuidado para que a bateria nunca acabe da tornozeleira. Se isso acontecer é uma falta grave, muito mais grave que simplesmente acabar a bateria do celular e não poder mandar uma mensagem no whatsapp ou ver o facebook. Serei colocado novamente na prisão imediatamente, sem que queiram saber a razão pela qual deixei acabar a bateria. Caso eu danifique a tornozeleira o mesmo problema acontece. Não importa se tropecei e bati com a perna em algum lugar, serei colocado novamente na prisão. Não posso nunca me esquecer do horário porque caso chegue em casa após as 23h em um dia de semana poderei ir para a cadeia. Com o agravante de que não sei qual é o horário na tornozeleira e no sistema de controle, logo preciso me prevenir e adotar uma margem de segurança (que estabeleci em 30 min) para minha própria segurança.

Logo, espero que entendam que não é simplesmente ter uma tornozeleira na perna que me faz sentir mal. Existe um conjunto de coisas que me tiram a paz de espirito. Perder a tranquilidade mental, pelo menos para mim, é uma maneira de se perder a liberdade. Para mim, uma das piores coisas em estar preso era justamente não conseguir parar de pensar em tudo que aconteceu. Perder essa calma mental, ter essa peso constante na cabeça é indescritível. 

Como restritiva de direito, a tornozeleira cumpre seu papel além do que o esperado. De todos os textos que eu li sobre a doutrina jurídica todos mencionam como ela é um meio mais humano de manter controle sobre um condenado, ou um réu num processo, com menos impactos financeiros para o estado e menos impactos sociais para a pessoa que a utiliza. Gostaria de saber como eles se sentiriam passando uma temporada na cadeia e posteriormente utilizando esta tornozeleira. Gostaria que todas as pessoas do mundo pudessem passar pela experiência de viver na cadeia, e ser tratado como eu vi tantas pessoas serem tratadas. Ser tratado como eu fui tratado. Tenho certeza que elas diriam que utilizar a tornozeleira é algo muito melhor! Neste momento gostaria que elas então pudessem fazer uso da tornozeleira com todas estes cuidados que eu listei anteriormente. Lembrando-os que qualquer falha da sua parte implica em voltarem, imediatamente, à cadeia. Sim, voltarem para o mesmo lugar do qual tenho certeza que qualquer pessoa diria que faria qualquer coisa para sair.

Ter este aparelho amarrado em mim é um lembrete constante do lugar para onde eu vou e no qual ficarei por anos. Um lembrete urgente de tudo que eu fiz de errado. Equivalente a uma letra escarlate costurado em minha roupa. Uma placa dizendo ao mundo que eu cometi um erro. Uma humilhação constante mesmo quando está escondida por uma calça. Porque mesmo que não esteja aparente para todo o mundo eu sempre sinto ela amarrada à mim. Sempre com receio de que alguém veja e reaja a sua presença. De que os poucos dias de liberdade que eu tenho antes de entrar na cadeia sejam erradicados pelo anúncio da sua presença.

Existem dias que por mais que eu lute contra mim mesmo para que eu não termine tudo aqui e agora eu sinto que esta luta é um pouco falsa. Como se eu me sentisse obrigado por lutar dessa maneira. De que o mais fácil seria desistir. Simplesmente me matar. Simples assim. Usar essa tornozeleira foi uma derrota mental muito grande para mim. Estava convencido de que seria preso na penúltima audiência. Nada me demovia disto. Quando foi necessário marcar uma nova audiência eu, em conjunto com a psicóloga e com os advogados, tive que trabalhar muito para mudar minha cabeça. De que não seria preso na audiência seguinte. De que nada aconteceria. Entretanto essa convicção foi destruída. Esmigalhada pela promotoria pública.

A minha quase prisão que culminou nessa tornozeleira foi um golpe duro na minha psique. Eu estou com medo de que enquanto ela se recupera minha cabeça esteja muito venerável a ter esses pensamentos ruins sobre se matar. Mesmo escrevendo sobre isto agora não consigo ter a mesma resposta do que antes. De dizer para mim mesmo de que se matar não é a resposta, que existem consequências para todos os atos e que eu deva arcar com as minhas. De pensar que existem pessoas que estão me apoiando, apesar de tudo, e que me matar vai ter um impacto enorme nelas. Nos meus pais. Nos meus amigos. Na minha família. Mesmo sabendo disto racionalmente, não sei mais se a lógica envolvida em me matar não é a mais correta. Ela parece ter várias falhas e inconsistências e desvantagens mas me parece ao mesmo tempo ser a melhor saída.

Eu segurei toda a carga emocional e psicológica dos meus pais quando a minha irmã morreu. Fiz isso por 2 anos. Fiz isso da pior maneira possível, reprimindo o que eu sentia dentro de mim e armazenando a tristeza e angústia deles também. Fiz isso até o ponto que eu me esgotei mentalmente e emocionalmente (falei sobre isso no post Medo). Quando achei que tinha feito algo para me recuperar (mudar de área dentro da minha empresa) descobri que a minha decisão foi péssima. Isto foi acumulando e acumulando dentro de mim e acho que devido a isto fiz o que eu fiz. Simplesmente ter machucado alguém inocente.

Após isto continuei anestesiado até o dia em que fui preso no começo deste ano. Desde então, passei por uma série de emoções como raiva, tristeza e etc. Raiva do mundo que no final descobri ser raiva de mim mesmo. Fui solto e procurei ajuda e comecei a melhorar minha cabeça. Consegui, finalmente, após mais de dois anos erguer minha cabeça. Comecei a perceber meus erros ao longo deste tempo todo e o impacto que isso me gerou. Comecei a melhorar a mim mesmo, melhorar a minha visão do mundo, meu controle sobre mim mesmo. Consegui até reverter esse meu medo aterrorizante e paralisante (novamente, ver post Medo) e transformar isto numa esperança de que nada daria errado. Talvez tenha transformado esta esperança numa expectativa irreal. De qualquer maneira, ter minha esperança destruída de maneira tão simples e efetiva me derrubou novamente. Todo o meu trabalho dos últimos meses parece ter ido por ralo abaixo. Não sinto mais vontade de continuar a me esforçar para nada. Para ir a academia, para continuar o regime, o tratamento. Sinto vontade de para com tudo. Para de viver. Terminar a minha própria vida. 

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